O BRINCAR: SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO E A CONSTITUIÇÃO DO EU

Autor: Carlos Alberto de Mattos Ferreira

O tema do brincar é muito caro à psicomotricidade. As teorias e práticas psicomotoras, tanto da clínica, quanto da educação, se apoiam na importância que a atividade lúdica desempenha na dinâmica da interface entre o psicomotricista educacional ou clínico e o sujeito que brinca, quer seja ele um bebê hospitalizado, uma criança ou adolescente, ou um idoso em busca da vitalidade. Ambos buscam um sentido para a existência, assim como em todas as fases da vida em que o brincar se faz senhor.

A atividade lúdica desempenha um papel fundamental no processo de desenvolvimento infantil e na constituição do Eu ou, como preferem alguns, do si mesmo, do self.

Quatro autores se destacam no estudo sobre a função do brincar e suas relações com o psiquismo. A saber: Sigmund Freud, Donald Winnicott, Jean Piaget e Lev Vygotsky.

O presente trabalho busca apresentar uma síntese das principais contribuições desses autores no campo do brincar e suas implicações na educação e na clínica contemporâneas.

Sigmund Freud: o prazer no movimento, o fantasiar, a polaridade lúdica, a inscrição do infantil no adulto e o desenvolvimento da capacidade criativa.

O autor que inaugura as reflexões sobre a relação entre o brincar e a constituição do psiquismo é Sigmund Freud.

Dentre as proposições de Freud, destaca-se que as primeiras abordagens sobre a importância do brincar têm seu início no ensaio sobre a sexualidade infantil (FREUD, 1905). Nesse texto, Freud descreve o prazer que as crianças sentem nos jogos infantis que remetem a experiências prazerosas de satisfação quando vivenciam (consigo mesmas ou com os outros) os movimentos mecânicos de balançar e serem jogadas para cima. Esse prazer pelo movimento se desdobra na percepção do ato de ninar e nas brincadeiras de faz de conta, sendo que nesta última a fantasia já comparece de forma representativa (imitar algo ou alguém). Dentro desse contexto geral, o jogo é considerado como uma atividade sexual.

O prazer pelo movimento, tão caro a psicomotricidade, tem inicio neste olhar inicial de Freud para a ação lúdica primitiva.

A descoberta da sexualidade infantil abriu portas para que se pudesse pensar as construções que a criança realiza desde a mais tenra infância, ainda em seus primeiros momentos de vida, até a manutenção desse estado infantil no psiquismo adulto, sob uma forma inconsciente e constituído pelo conteúdo imaginário denominado de fantasia. A psicanálise sustenta que a vida psíquica dos adultos tem sua origem na infância, o que levou Freud a reafirmar a máxima de que a criança é o pai do homem (FREUD, 1913).

O brincar surge como o protótipo da capacidade criativa. Especialmente, nos elementos que constituem a sua atividade potencial do fazer poético E aquilo do que mais se ocupa a criança é o brincar. Durante o ato de brincar, a criança não estaria se comportando como um poeta, na medida em que cria seu mundo próprio, melhor dizendo, não estaria introduzindo elementos de seu próprio mundo em uma nova organização criativa, de forma a obter maior prazer?

Comparando o fantasiar com o brincar, Freud assinala que, enquanto o brincar infantil é uma atividade que a criança pode realizar sozinha ou com outros companheiros, sem se preocupar se está sendo vista, ou não, brincando, o fantasiar adulto tem como característica principal, o fato de não ser revelado. O sujeito fantasia seu conteúdo, sem revelá-lo, por se sentir envergonhado por este, sendo capaz de expor publicamente mais as suas falhas do que seus devaneios. Assim como o brincar para a criança, o adulto cultiva sua fantasia como algo íntimo e profundamente valioso. Em virtude da não expressão da fantasia, o adulto crê que seu conteúdo seja único e que outros não compartilham desse tipo de pensamento.

Donald Winnicott: a construção de vínculos, o trajeto que vai da relação mãe/bebê aos investimentos culturais.

Trabalhando com arcabouço teórico diferenciado, Winnicott se debruça sobre os primórdios da relação mãe e bebê, contribuindo para a compreensão dos processos psíquicos que têm lugar no desenvolvimento emocional.

O brincar também ocupa um papel de extrema importância na constituição dos vínculos, sendo um dos mais importantes pilares do diagnóstico e das intervenções clínicas e educacionais. Os fundamentos winnicottianos contribuem, de forma decisiva, para se pensar, entre outros, a importância da clínica dos primórdios e suas manifestações na vida adulta.

A atividade lúdica deve ser estudada como um processo em si mesmo, e não como um produto da sublimação, tal qual Freud sinaliza. Como o brincar tem um aspecto universal encontrado em todas as crianças, “deve merecer um estudo próprio, ‘suplementar’ ao estudo da sublimação dos instintos” (WINNICOTT, 1971/2006:53).

Nesse processo, é possível constatar uma linha que tem origem na relação mãe e bebê e segue até aos processos de construções culturais, como um caminho de desenvolvimento lúdico, fundamental para entender as dinâmicas que envolvem a interação terapêutica.

Inicialmente, a brincadeira entre mãe e bebê reafirma certa experiência de um gesto que vincula um fazer ao real. Pura experiência com inscrição intrapsíquica. E que pode construir na base do processo psíquico a percepção de pertencimento e confiança.

Num segundo momento, a criança passa a brincar sozinha, na presença de outro que pode, ou não, ser convocado a participar da brincadeira. Para tal, tem que estar disponível e atento a um possível e provável apelo de atenção.

O terceiro momento é marcado pela entrada materna com novas formas do fazer brincar, preparando a criança para começar a aceitar o brincar num relacionamento.

O quarto momento é a passagem do brincar compartilhado para as experiências culturais. A experiência do fazer/brincar que se inicia na relação mãe bebê segue uma linha de desenvolvimento que desabrocha nos processos criativos do sujeito diante da cultura.

Jean Piaget: jogo primitivo de exercidos motores, jogos simbólicos e jogos com regras.

Inicialmente com Piaget, pode-se compreender a psicogênese como uma teoria sobre a construção do conhecimento, do funcionamento da mente humana, obedecendo a uma hierarquia adaptativa do sujeito ao meio (e do meio ao sujeito), cuja gênese encontra-se apoiada na experiência da ação sensório-motora, que sustenta os instrumentos de representação perceptiva e de lógica da realidade observável, organizando-se sob um contexto mais abstrato, em um pensamento socializado.

Amparados pela interação do sujeito com o meio ambiente, a atividade lúdica cumpre um papel fundamental na constituição deste processo. O desenvolvimento da inteligência acompanha as diversas etapas da constituição lúdica. Tanto no que diz respeito às estratégias mentais cognitivas quanto aos processos de construções de regras e da capacidade de julgamento moral.

No presente quadro é possível acompanhar as relações entre estes três campos: os estágios do desenvolvimento, os processos de construção lúdica e os de construção de regras (PIAGET, 1994):

Estágios do desenvolvimento Processo de construção lúdica Construção das regras
Sensório-motor Jogos de exercícios Simples práticas regulares individuais.
Regras motoras.
Manipulação de objetos.
Esquemas ritualizados.
Pré-operatório Jogos simbólicos Imitação dos maiores com egocentrismo.
Joga para si, mesmo acompanhada.
Operatório concreto Jogos com regras Cooperação nascente.
Vencer/Controle mútuo.
Início da unificação das regras.
Hipotético dedutivo Jogos com regras Interesse e codificação das regras.
Consciência autônoma.
Objetividade.

A contribuição piagetiana tem enorme influencia no desenvolvimento teórico, educacional e clínico em inúmeros autores da psicomotricidade. A relação entre o desenvolvimento e a constituição do Eu é um dos pilares deste arcabouço do campo psicomotor.

Lev Vygotsky: Zona de desenvolvimento proximal, brincar e desenvolvimento

A contribuição vygotskyana produz, provavelmente, o mais incisivo destaque para o papel do brinquedo no processo de desenvolvimento. Podendo ser considerado como elemento indispensável do processo de aprendizagem, a atividade lúdica é o agente capaz de produzir desenvolvimento das funções psíquicas elementares e superiores (VYGOTSKY,1991).

Carregando consigo a herança de gerações passadas, o brinquedo insere a criança no mundo da linguagem e do uso cultural dos instrumentos pertinentes a cada contexto sócio-histórico.

Por meio da interação entre a fala e a ação, o brinquedo se constitui no elemento de mais alta relevância para inscrever na consciência as funções de planejamento e previsibilidade, além de ser um importante organizador das noções temporo-espaciais.

Dentre as principais propriedades do brinquedo, destaca-se: 1. Condensa todas as tendências do desenvolvimento; 2. Fornece ampla estrutura básica para mudanças da consciência; 3. Torna possível a ação na esfera imaginativa, a criação das intenções voluntárias, a formação dos planos da vida real e as motivações voluntárias; 4. Agencia a atividade condutora que determina o desenvolvimento infantil.

Considerando-se a relação entre as funções psíquicas superiors e o processo do brincar, apresenta-se o seguinte quadro esquemático:

Funções psíquicas elementares
(processos mediados externos)
Funções psíquicas superiores
(processos mediados internos)
Construção sócio-histórica do brincar
(desenvolvimento pelo brincar)
Atenção Involuntária Atenção Voluntária Estável Atenção é uma função “chave”.
Constitui-se a partir das interações com o meio e é determinante do sucesso ou insucesso de uma operação.
Brincando com o uso da fala, a criança passa a dirigir sua atenção; percorre mudanças na situação imediata, em relação ao passado, visando o futuro.
Quanto maior a atenção, maior a regulação da atividade.
Percepção Direta Percepção Significante Brincar organiza o campo do significado com o campo da ação;
Possibilita a passagem das leis sensoriais às idéias, tornando a ação independente das condições físicas do objeto.
Organiza-se por meio dos jogos de papéis e de regras.
Memória elementar imediata Memória Semântica Brinquedo é mais a lembrança do que realmente aconteceu do que imaginação. É a memória em ação. Há muito pouco de imaginário, no início. A situação é imaginária, mas é compreensível somente à luz de uma situação real que, de fato, tenha acontecido.
Fala social Fala interna: função comunicativa e de organização do pensamento O brincar permite a internalização da fala social.
Vínculo indispensável para a socialização e a construção do pensamento.
Transição em direção à operação com significados por meio de construção semântica e sintática.
Pensamento de construção Pensamento verbal- lógico O brinquedo possibilita a transição entre operação com o significado das coisas e o pensamento abstrato, o desenvolvimento da vontade e da capacidade de fazer escolhas conscientes
Movimento Incoordenado Ação Voluntária A ação do brincar, numa situação imaginária, ensina a criança a dirigir seu comportamento por meio da percepção imediata, e pelas idéias e significados.
Desenvolve a atividade voluntária, controlando a impulsividade primitiva e regulando os movimentos.
Transformação dos movimentos em bloco em diferenciados e coordenados.

Conclusão

Os quatro autores apresentados podem ser considerados os mais importantes para a contribuição das teorias sobre o brincar para o desenvolvimento e para a formação do Eu, ou de si mesmo.

A Psicomotricidade, asssim como uma gama enorme de áreas vinculadas à educação e à saúde baseiam seus trabalhos em desdobramentos das ideias desses autores.

Conhecê-los, nos fornece solidez para encaminhar nossas práticas clínicas e educacionais.


Bibliografia

FREUD, Sigmund. Três Ensaios para uma Teoria da Sexualidade a sexualidade infantil (1905). Standard Edition das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.

FREUD, Sigmund. O interesse da psicanálise de um ponto de vista de desenvolvimento (1913). Standard Edition das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996.

PIAGET, Jean. O Juizo Moral na Criança. São Paulo: Summus Editorial, 1994.

VYGOTSKY, Lev S. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

WINNICOTT, Donald. O Brincar e a Realidade (1971). Rio de Janeiro: Imago Editora. 1975.